2 de julho de 2015

sentença prévia


O céu perdia o cinza. O azul já havia morrido, ainda que fosse dia. A escuridão da tormenta mostrava seus sinais ao longe, ainda que se aproximassem em uma velocidade espantosa. Da janela, eu via o céu e a vista dela sempre me fascinara, mas agora não.

Do Centro, víamos relâmpagos violentos. Dos que pareciam sair do chão rumo aos céus. Relâmpagos que esbravejavam, que abriam caminhos, que até pareciam não escolher vítimas. Da deserta área central, sentíamos o vento frio e forte do ódio, poderoso como uma faca que corta a pele e ceifa a vida. Minha vida já não importava. Nem aos outros, nem a mim.

Aqui, longe do centro, trovões como vozes de mil atormentadas almas ribombavam clemência. Não existia isso. Há séculos, já havia a sentença. A minha, a dele. 

Ele me encarava com olhos marejados, como se meu abraço, mesmo que ali o coubesse, não fosse suficiente. Escutávamos tudo calados, enquanto ele coçava os olhos com as costas da mão e em seguida, secava as lágrimas de meu rosto que eu sequer notei que caíam. 

Achei ter visto um raio de sol entrar pela janela, mas o relâmpago clareou o pequeno quarto, iluminando cada detalhe dele por um segundo. E estávamos lá, sentados ao chão, com nossas marcas expostas, com nossas peles a mostra, que em seguida, se confundiam com a escuridão do quarto, pois o dia já morrera. A noite veio. Em seguida, a madrugada, a hora das cobras e dos algozes.

Pedi perdão ao mundo, a ele. Já sabia que minha passagem logo chegaria ao fim. A dele continuaria, em contagem regressiva, até que os trovões silenciassem, até os relâmpagos cortassem céus e almas, pois eu sabia, a chuva já começara a cair.



14 de abril de 2015

"Fortaleza": uma homenagem

Venho escrevendo canções que farão parte de um EP, provavelmente intitulado "vizinhança".
Essas canções são reflexos de minha relação com lugares/pessoas/sentimentos que frequentei/amei/vivenciei desde minha chegada em Fortaleza, ainda na primeira infância, até a adolescência.
A canção que fecharia o EP, infelizmente, não pude gravar para a data de hoje, em nome do aniversário da Fortaleza, mas, mesmo como poesia, fica minha homenagem à cidade que me habita:

("Fortaleza em azul e amarelo", acervo pessoal)



Fortaleza

Dentre várias, ainda és bela
Das altas castas, pelas favelas
O mar te toca, o sol descansa 
de longe eu vejo, como uma criança

E finda o dia, uma boa sorte!
Sopra a brisa, através do forte
És desigual, como tantas são
Fragmentada, sem perdão 

Teus gigantes podem nem ser tão grandes
Mas ainda assim rasgam os céus

Entre o amor com o qual me abraças
 e o ódio por não te ter
Pela tua parte que nos ataca
E ainda finge que nem vê
Mesmo em sinais, muros e calçadas
Onde se acha poesia
Obriga a gente a ser mais forte
Para te aguentar por mais um dia

Em tuas vias um cortejo motorizado 
cadenciado, com engravatados 
Jovens faces sujas lhe estendem a mão
Em nome da cola, em nome do pão

Chuvas de março, calor de outubro
A insegurança, em becos escuros
Cores que nunca vencem o cinza
Mas ainda há verde, em resistência

O mar colore a vista da periferia à beira-mar 
O mar é fuga e salvação 

Entre o amor com o qual me abraças
 e o ódio por não te ter
Pela tua parte que nos ataca
E ainda finge que nem vê
Mesmo em sinais, muros e calçadas
Onde se acha poesia
Obriga a gente a ser mais forte
Para te aguentar por mais um dia

12 de novembro de 2014

estado crônico: "estado de poesia"


Por favor, clica no "play" e vai!
Um dia de semana, uma segunda-feira qualquer, uma noite como qualquer outra. Fones nos ouvidos, saindo do mercado, sacolas plásticas nas mãos e uma mureta a frente que acompanhava todo o caminho que deveria seguir. Uma nova música começa a tocar...

Uma agradável música, com um excelente refrão, daqueles grudentos, radiofônicos, falando sobre a lua, o sol, o romance, o verão. De repente, um chamado...

A baixa mureta me convida a ter menos de um terço de minha idade, convidando-me a subir nela em quase total desequilíbrio, mas não caio. As sacolas nas mãos me servem de suporte, os passos aceleram, diminuem, avançam, recuam em busca de equilíbrio. Um passo apressado em uma tentativa de não cair, não há sinal de vergonha, pois o mundo mudou...

Não havia mais grama. Pensava ver, à direita e à esquerda, não mais o chão a 40 centímetros. Havia larva, ou estacas fincadas no chão, ou um abismo negro. Havia cenários de filmes aventurescos de tardes ociosas em frente à TV. Com toda perícia que ainda me sobra, chego ao final da mureta. Tal qual um saltimbanco, um rápido pulo, quase pedindo para uma plateia imaginária os aplausos que merecia, com os braços ligeiramente erguidos, ainda carregando as sacolas e sorrindo da travessura. Um sorriso leve e sincero de quem ainda não morreu ou se entregou. Estou vivo...

Olho para uma das sacolas e lembro, aflito, dos ovos que estavam lá dentro, matando o sorriso, mas não importa, pois a mureta ainda está lá, pronta para ser revisitada em uma próxima aventura irresponsavelmente cuidadosa.

***

da série "estado crônico"

8 de setembro de 2014

estado crônico: depoimento



Já é bem tarde. Tarde da noite, com todos os relógios da casa passando das 4, ainda que não haja um consenso entre eles. E no silêncio noturno, quebrado por latidos distantes, perambulo pela casa, percebendo as migalhas de memórias registradas pelas fotos espalhadas, relembrando viagens que fizemos juntos, na longínqua época em que éramos 2, não 3. 

De lá pra cá, tudo mudou. Rotina, foco, preocupações, até a trilha sonora de nossos dias. Ainda que o cansaço nos domine, ainda que os beijos, vez ou outra, saiam burocráticos, ainda que os longos abraços se tornem escassos, eu ainda estou aqui e, prometo, por trás dessa camada de cansaço, traduzido em rugas e cabelos brancos, continuarei ao seu lado por mais tempo do que você desejaria, talvez.

Por fim, duas palavras: obrigado e desculpa. Tenho consciência de que até uso a segunda com alguma freqüência, na eterna tentativa de ser um companheiro melhor. Já a primeira, talvez esteja em falta em meu vocabulário para com você, mas saiba que só tenho a agradecer aos deuses, novos e antigos, por terem lhe posto em minha vida.

Te amo!

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