4 de maio de 2009

"estado crônico: estranho céu lilás"

Havia uma cor estranha no céu daquela noite que se iniciava. Não havia o vermelho-rosado de um começo de noite, nem havia o azul desbotado de um fim de tarde. Havia um lilás, forte e vivo no horizonte, mas pálido e profundo, no auge. Seria uma noite estranha como o próprio céu sugeria. Seria uma noite marcada por uma grande mistura de emoções. Os céus se iluminavam, gritavam de ira, fazendo os humanos daquela pacata e provinciana cidade respirarem fundo de medo a cada relâmpago e, mais uma vez, a cada trovão.

Foi nessa combinação de cores, sons e emoções que ele chegou ao seu apartamento. Estava encharcado pela chuva que caía insistentemente desde que havia saído de casa pela manhã. Com o fim do dia, o frio havia aumentado bastante e a chuva tornava-se cada vez mais torrencial. Sussurrou algo em forma de agradecimento por ter conseguido chegar a salvo, apenas encharcado. Tirou toda a roupa no caminho entre a porta principal e a do banheiro, deixando pelo corredor um rastro de poças d’água e roupas abarrotadas. Entrou no banheiro e preparou-se para um banho quente, mas não sem antes ligar o aparelho de som. Música sempre lhe fez companhia desde criança e em noites estranhas como aquela (por mais que ele nem sequer houvesse notado ainda o que havia de estranho nela), música conseguia ir além. Deixava de ser companhia para se tornar salvação.

Saiu do banho quente vestindo um robe escuro, juntando todas as peças de roupa jogadas e as levou ao cesto. Certas coisas, já fazia mecanicamente como, logo após deixar as roupas na área de serviço, voltar pela cozinha, passar pela geladeira, abrir uma cerveja e ir até a varanda.

Ali prostrado diante de uma cidade que se escondia sobre uma cortina de fumaça, neblina e chuva. Diante da cidade que se escondia por baixo de um dilúvio, ele notou o céu pela primeira vez naquela noite. Foi quando aquele lilás que guerreava consigo mesmo pelo domínio dos céus lhe chamou atenção  pela primeira vez. Era realmente uma cor estranha, não era natural, ou pelo menos não parecia.

Seu olhar foi logo em seguida dos céus ao chão quando ouviu, vindo da rua, os barulhos e os gritos de algumas crianças que brincavam, corriam, caíam e riam alto umas das outras. Somente crianças não notariam aquele lilás estranho. Somente crianças não se importariam com o dilúvio que acometia a cidade. Somente crianças conseguiam ser felizes, mesmo que por alguns segundos, em meio àquela cidade que se tornava cada vez mais cinza pela neblina, fumaça e arranha-céus que estavam sendo construídos.




Da série "estado crônico"

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