3 de novembro de 2011

estado crônico: carta a alguém do passado


"Não tinha a mínima idéia de como começar essa carta, então vou no modo mais simples: eu te odeio!

Entenda, eu não te odeio pelo fato de você ter dito "não" para mim, para nós dois. Isso doeu muito, durante muito tempo, mas não o suficiente para me fazer te odiar. Apesar de todo o tempo que passamos juntos, tudo que você construiu em mim a partir de um sentimento que parecia recíproco, mesmo assim nunca te odiaria por isso.

Eu te odeio pelo que você me tornou. Você mexeu na minha vida e principalmente em tudo que eu tanto amava quando era apenas um adolescente no colégio. Música, esportes, amigos, seus olhos castanhos... Tudo que eu já amava quando te conheci aos 16, você fez com que eu amasse mais ainda.

Sempre fui apaixonado por música, com LPs, K7s e CDs espalhados pelo quarto, sempre cantarolando alguma canção às vezes não tão conhecida, mas você me fez ir além. Em meses, meu quarto passou a não ter mais paredes e sim, murais com pôsteres de todos os grandes caras que admirava. Foi nessa época que aprendi a tocar e você sabia que era por você e para você que eu estava ferrando meus dedos nas cordas daquela velha guitarra.

Sempre fui apaixonado por esportes, acompanhava quando podia pela tv, estava sempre jogando bola nos intervalos, mas foi você que me incentivou a ir aos estádios, coisa que não fazia desde que meu velho tio, que sempre me levava, morreu, três anos antes de te conhecer. Se isso não bastasse, você ainda tinha que ser diferente das outras garotas que morriam de nojo quando chegava suado em sala de aula depois de jogar bola durante o recreio. Você ria, puxava a manga de minha camisa com um olhar avaliador, uma sobrancelha erguida e dizia "até que nem está tão sujo, sujinho!" ou algo do tipo. Sempre acontecia, sempre ríamos.

Você saia junto comigo e meus amigos. Era sempre quem mais zoava com a cara de todos, o que poderia ser considerado um grande feito dada a natureza das piadas de meu grupo de amigos. Isso parecia te divertir muito e quando sorria, sorria também com seus olhos castanhos. Foi num desses sorrisos que me apaixonei.

Assim, passamos meses nos vendo, nos falando diariamente, saindo semanalmente, indo ao cinema, à sorveteria e trocando confidências que ninguém ouviria de um garoto de já 17 anos. Isso que me fez te odiar, não o seu "não".

O que me fez te odiar foi saber que eu tinha mudado, mas eu sequer podia te culpar. Primeiro, porque eu não "mudei", apenas sai de uma superfície tranqüila e mergulhei fundo em tudo que tanto amava. Depois, por mais que você tivesse feito o papel de catalisadora, eu "mudei" por mim mesmo. Você me empurrava, mas não para eu olhar para trás.

Essas linhas são apenas a expurgação de algo que me corroeu por anos. O garoto, que era "menino demais" para você, cresceu, tornou-se um adulto, sem nunca deixar de ser "garoto". Eu continuo andando pelas mesmas ruas pelas quais andávamos errantes e por onde errei em acreditar que o mundo poderia fazer sentido ao lado da primeira garota que realmente amei.

Isso não é uma cobrança, é apenas um adeus.

Tenha uma boa vida.
Eu sigo só.

Adeus"


***

da série "estado crônico"

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