6 de novembro de 2012

a janela

Cresci numa família estranha, pelo menos pra boa parte das pessoas de minha rua. Aprendi a ler e escrever em casa. Aliás, aprendi tudo que podiam me ensinar em casa, meus pais não queriam que eu saísse. Na cabeça deles, o mundo era violento e cruel demais para que eu pudesse correr com as outras crianças da rua lá fora. Não os culpo, eles perderam um filho assim, mas fuçar em casa o tempo todo já estava ficando mais do que angustiante. Foi quando notei que, naquele tarde, pela janela de meu quarto, pude ver novos vizinhos mudando para a casa na parte de cima da rua, foi quando a notei.

Deixe-me lhes explicar uma coisa. Segundo meus pais, todas as minhas leituras eram compostas pelos textos religiosos que eles me cediam. Só que um primo distante me visitava todo ano com seus pais. Ele era meu alimentador de vícios, naquela época. Ele que me enchia com coisas que meus pais não queriam que eu lesse ou vivesse. Naqueles anos reclusos, os livros escondidos e minha janela mantinha minha sanidade até onde agüentava. Quando não suportava mais, gritos com o rosto enfiado no travesseiro ainda poderiam servir de válvula de escape, sempre acionada quando ninguém estivesse em casa. Eu não podia me arriscar.

Como falava, numa tarde distante, vi aquela garota pela primeira vez. Cabelos longos, ligeiramente assanhados e encaracolados me chamaram atenção. Parecia estranho olhar para ela, com seus movimentos teatrais, suas expressões exageradas e seu olhar que parecia reter toda a luz ao redor. Ela era diferente em meio a mundo de iguais que minha janela mostrava. Ela seria minha Ofélia desde que eu não enlouquecesse, principalmente depois que meu pai faleceu meses depois.

Meses passaram e da janela eu a assistia passar rua acima ou abaixo, sempre distraída com algo como fones nos ouvidos ou alguma coisa eletrônica nas mãos que clareava seu rosto nos fins de tarde quando voltava da escola.

Um ano depois de se mudar para a casa da parte alta da rua, sua família se mudou e nunca mais vi aquela garota. Um ano depois disso consegui ir passar uns tempos na casa de meu primo e nunca mais voltei pra de minha mãe. Ainda mando cartas, telefono raramente, sei que ela sofre, mas digo sempre pra ela "é minha vez de viver e sentir o mundo". Ela sempre me pede pra voltar, sempre!

Hoje, lembro de minha adolescência através de flashes de memória que minha janela me trazia. Como quadros em movimento, figuras errantes e uma garota que dançava subindo a rua, achando que ninguém a via. Ela era como uma gota de tonta rebelde que manchava as pinturas em preto e branco que habitam minha memória de um tempo em que precisei de livros contrabandeados, de um travesseiro para gritar e de uma dramática garota diferente para que não perdesse a noção que ainda poderia sair, na hora certa, desde que pudesse me agarrar com os últimos traços de sanidade que carregava. 

***

da série "estado crônico"

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